Por: David Santos
Longe de ser apenas o processo de ensinar uma pessoa a ler e escrever, a alfabetização é o processo de apropriação do código de comunicação de um povo, que traz em si uma bagagem histórica, cultural, política e social.
Para Paulo Freire, a alfabetização é um meio de conscientização e libertação - a criança chega à escola sabendo ler o mundo que a cerca, seus agentes e objetos. A leitura da palavra a fará tomar consciência disso e possibilitará que tenha acesso a conhecimentos e informações que estavam fora de seu alcance, como consequência, gerando autonomia e liberdade para uma leitura crítica do mundo e o convite a ser um agente transformador deste mundo. Nas palavras poéticas de Rubem Alves, a leitura da palavra "nos ajuda a ver o mundo melhor, aprendemos as palavras para melhorar os olhos".
Desta forma, para Freire, a alfabetização não é um processo ativo-passivo entre professor e aluno, mas um processo dialógico de troca e construção conjunta de conhecimento. E, por isso, a importância de a alfabetização estar relacionada ao contexto social e cultural dos alunos.
Rubem Alves, que comunga do mesmo pensamento de Freire, aponta que a alfabetização deve ser um convite ao conhecimento e à exploração. Assim, o educador-alfabetizador deve incentivar a curiosidade e o prazer em aprender, estimulando a imaginação e criatividade das crianças por meio de artifícios lúdicos e variadas formas de linguagem (música, poesia, imagens etc.). Alves reforça, ainda, a relação afetiva entre educador e aluno e entre o aluno e o ambiente. Para ele, é fundamental um ambiente afetivo e acolhedor, pois alfabetizar é também cultivar a emoção, a criatividade e a capacidade de sonhar, tornando a educação uma experiência mais completa e significativa.
Evidencia-se que a alfabetização é um dos períodos mais importantes da educação, pois envolve o desenvolvimento cognitivo, a autonomia, a motivação e a autoestima. É a base para todas as aprendizagens, é a preparação para o futuro e seus impactos na sociedade.
Isso pode soar meio utópico para quem conhece a realidade da educação básica brasileira, tão negligenciada: pouco investimento em infraestrutura das escolas, superlotação das salas, currículo engessado, escassez de materiais didáticos e recursos pedagógicos, formação inadequada para professores com foco em alfabetização, ausência de plano de formação continuada, de apoio pedagógico ou psicológico, gerando desgaste emocional e alta rotatividade, além e, principalmente, a baixa remuneração.
Então, qual é a solução?
"Troquem professores por robôs e inteligência artificial".
É o que sugere o relatório divulgado em 2017 pela Mckinsey & Company, que revela que os avanços alcançados em robótica, inteligência artificial e aprendizagem de máquina permitirá que as organizações melhorem a qualidade e velocidade em seus processos, reduza erros e alcancem produtividade e resultados que vão além da capacidade humana.
O relatório questiona: onde as máquinas podem substituir os humanos?
O jornal The Guardian avaliou o relatório e apontou algumas profissões, dentre elas, o professorado. O artigo publicado mostra que em alguns países isso já é uma realidade. Softwares permitem a professores universitários gerenciar centenas de alunos ao mesmo tempo. Plataformas LMS (Learning Management System) e MOOCS (Massive Open Online Courses) estendem seu alcance para milhares de outros. E robôs físicos reais estão sendo usados ??para ensinar inglês a alunos no Japão e na Coreia.
Um infográfico anexo ao relatório revela que apenas no Brasil, 53,7 milhões de trabalhadores podem ter suas atividades potencialmente automatizadas. Quando avaliado especificamente a área de Educação, há um potencial de automação, transformação ou redução de 977,7 mil postos de trabalho de um total de 3,6 milhões de profissionais.
Mas poderia a IA ou um Robô substituir professores no processo de Alfabetização?
Em seu livro "Os robôs devem substituir os professores: IA e o futuro da educação (2019)", Neil Selwyn explora a crescente integração da inteligência artificial na educação e suas implicações para o futuro do ensino e da aprendizagem e nos convida a refletir sobre o papel da tecnologia na educação, enfatizando a importância de manter os educadores no centro do processo de aprendizagem, tendo em vista que a interação humana é essencial para uma aprendizagem significativa, além das limitações da tecnologia no que se refere a questões emocionais ligadas ao processo educativo.
Neil não descarta o uso das tecnologias e sugere que o futuro da educação deve envolver uma colaboração entre humanos e máquinas, em que a IA complementa, em vez de substituir, o papel dos educadores.
A IA pode apoiar a criação de histórias, poemas e músicas personalizadas. Os avanços na IA multimodal permitem a integração de texto, imagem e som, possibilitando experiências de aprendizado mais ricas e experiências educativas mais envolventes. Quando o assunto é inclusão, a IA pode ajudar os professores a adaptarem conteúdos e atividades com base no progresso e interesses individuais das crianças, promovendo um aprendizado mais eficaz.
O desenvolvimento de assistentes virtuais mais interativos pode ajudar as crianças a explorarem temas educativos de forma lúdica, além de desenvolver jogos que se adaptam ao nível de habilidade da criança. Tais avanços oferecem oportunidades de enriquecer a educação, tornando-a mais interativa e adaptada às necessidades de cada criança, enquanto desenvolvem habilidades essenciais para o futuro.
Grosso modo, ferramentas de IA podem liberar os educadores de tarefas administrativas, permitindo que eles se concentrem mais no desenvolvimento socioemocional e na mediação do aprendizado.
Como vimos, a alfabetização, para além de um processo cognitivo, é também um processo social e emocional. Sendo assim, a interação com educadores e colegas é crucial para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, como empatia e comunicação e, apesar de sua capacidade, a IA não pode substituir a compreensão emocional e a intuição que um professor humano traz para a sala de aula.
A inteligência artificial apresenta um potencial significativo para transformar a alfabetização, oferecendo recursos personalizáveis e interativos. No entanto, é crucial reconhecer que a tecnologia não pode substituir a figura do educador, que desempenha um papel insubstituível no desenvolvimento socioemocional e no engajamento crítico dos alunos.
A combinação do uso de IA com práticas pedagógicas centradas no afeto e na interação humana pode criar um ambiente de aprendizagem enriquecedor, que respeite a singularidade de cada criança e a complexidade do processo de alfabetização.
Sobre David Santos: David é formado em Recursos Humanos, possui pós-graduação em Psicologia Organizacional e é Bacharel em Pedagogia. É também autor do livro "A menina que já nasceu criança".
Referências:
Mckinsey & Company - consultoria empresarial de escala global que apoia empresas, governos e outras instituições na solução de problemas complexos, remodelando negócios e criando estratégias para que se adequem a novas realidades.
Neil Selwyn - pesquisador em educação australiano, com muitas publicações, artigos e livros sobre educação e tecnologias.
Fontes:
- Aproveitando a automação para um futuro que funciona https://www.mckinsey.com/global-themes/digital-disruption/harnessing-automation-for-a-future-that-works
- Onde as máquinas podem substituir os humanos — e onde não podem (ainda) https://public.tableau.com/app/profile/mckinsey.analytics/viz/InternationalAutomation/WhereMachinesCanReplaceHumans
- The Guardian: Atores, professores, terapeutas – acham que seu trabalho está a salvo da inteligência artificial? Pensem novamente https://www.theguardian.com/technology/2017/feb/09/robots-taking-white-collar-jobs
- Os robôs destruirão nossos empregos – e não estamos preparados para isso https://www.theguardian.com/technology/2017/jan/11/robots-jobs-employees-artificial-intelligence